“Nossas águas, nosso tesouro”

16/06/2020

 O córrego perto de mim

Por Kele Firmiano

O começo de tudo

Em dezembro de 1989, minha família e eu nos mudamos para nossa casa própria em Ibirité - MG. Enquanto meus pais sentiam-se aliviados por terem se livrado do aluguel, meu irmão e eu estávamos ansiosos para desbravar o nosso novo bairro. O bairro estava se formando e mais parecia uma fazenda, com direito a carro de boi, vacas leiteiras, muito verde, inúmeros pés de manga frutificando e um córrego! Naquela época, ele já não era um córrego de águas limpas, em que se podia nadar, mas passear em suas margens podia sim, e este era um dos passatempos prediletos meu e de meu irmãozinho.

Com o tempo, o bairro foi ganhando mais moradores e fizemos novos amigos e amigas. Mas o aumento da população foi acompanhado por uma drástica diminuição da natureza. O bairro perdeu aquele ar bucólico que eu tanto gostava, os pés de manga deram lugar a novos lotes totalmente cimentados, e o nosso córrego foi perdendo aquele encanto, e tornou-se um lugar repugnante. Com o passar do tempo era possível observar o acúmulo de lixo e o aumento de canos despejando esgoto que vinha das casas diretamente para dentro dele. Infelizmente esta é a realidade da maioria dos córregos urbanos, e o destino do nosso não foi diferente.

Mudanças nos usos e ocupação da terra em Ibirité (MG). O "x" indica a localização aproximada do córrego Urubu perto da minha casa. Fonte: Mapbiomas, coleção 4.

O tempo passou, eu cresci, estudei Biologia e tornei-me ecóloga. Há mais de 10 anos estudo ecossistemas aquáticos, e estou interessada em compreender como pressões antrópicas, tais como as consequências de mudanças nos usos e ocupação da terra afetam a diversidade de organismos aquáticos. Além de realizar pesquisas científicas de base, estou junto com as ecólogas Juliana França e Gisele Moreira aqui do blog para estimular você a se tornar um/uma cientista cidadão/cidadã a cuidar de nossos ecossistemas aquáticos! É com muita alegria que eu te convido a conhecer um pouquinho do córrego que fez parte de minha infância, e te apresentarei a ele a partir de uma visão ecológica. Vamos lá?!

Eu pertenço à bacia hidrográfica do rio Paraopeba!

O córrego que atravessa meu bairro se chama Urubu. Provavelmente ele recebeu este nome porque corta uma região que era popularmente conhecida como Urubu (não sei o porquê do nome). Segundo a prefeitura de Ibirité, o córrego Urubu localiza-se na margem esquerda do ribeirão Ibirité. Este ribeirão deságua no rio Paraopeba, que por sua vez, deságua na parte alta do rio São Francisco, isso mesmo, o famoso Velho Chico!

A paisagem mudou, e o córrego também

Como eu te contei lá em cima, meu bairro mudou bastante, e o córrego Urubu "sentiu" essa mudança. O Urubu corta meu bairro em duas partes, e na época, o acesso entre elas era feito por uma pinguela, que nada mais é do que uma ponte improvisada, com um espesso tronco de árvore para caminhar, e outro mais alto e mais fino logo acima, que servia de corrimão. Era bem perigoso passar por esta pinguela escorregadia, mas também nos divertíamos balançando sobre ela. Sim, vivíamos perigosamente!

Acessávamos as margens do Urubu e seguíamos o seu curso justamente abaixo da pinguela. Com o tempo, a pinguela deu lugar a uma ponte de madeira mais larga e mais segura, e depois a outra ponte asfaltada. Essas mudanças aumentaram a nossa mobilidade, já que agora podemos atravessar o Urubu de carro. Mas se antes podíamos andar pelas margens, agora não podemos mais. Mais e mais casas foram construídas cada vez mais próximas das margens, até que chegaram literalmente a ocupar as margens por completo. Assim, o Urubu foi perdendo espaço para a urbanização, e correndo em um canal cada vez mais estreito. Durante o período chuvoso, o Urubu não tem condições de escoar o grande volume de águas que fluem em pouco tempo, pois sua planície de inundação foi totalmente ocupada. A ocupação das margens é um dos grandes problemas que agravam as consequências das enchentes nas cidades.

O córrego de dentro do córrego

Meu irmão e eu éramos exímios desbravadores do Urubu! Uma vez nas margens, andávamos centenas de metros para cima e para baixo. Era das margens que víamos que Urubu tinha vida! Havia pés de framboesas com frutinhas vermelhas, podíamos ver as belas lavadeiras mascaradas e as velozes libélulas (Odonata) que sobrevoavam o leito em busca de locais adequados para depositarem os ovos.

Libélula adulta. Foto: Frederico Falcão Salles.  

Lavadeira mascarada (Fluvicola nengeta). Foto: Alessandro Abdala.

O Urubu era muito diferente entre uma curva e outra. O substrato embaixo da ponte era formado por areia e argila, e a água corria bem lenta. À medida que caminhávamos observávamos diferentes tipos de substrato. De areia a cascalhos, seixos (pedras maiores, que cabem na mão) até grandes matacões (rochas) que chegavam a ter o tamanho de um carro! O fluxo da água também mudava. Às vezes era mais rápido e o leito mais raso, em outros lugares formavam-se piscinas bem fundas e água parecia estar parada.

Ao longo do caminho a vegetação das margens também ia mudando. Em geral os riachos possuem vegetação nativa em ambas as margens, conhecida como mata ciliar. Essa mata é MUITO importante, pois protege o córrego. Em algumas margens a mata ciliar do Urubu era muito espaça ou mesmo inexistente, em função das construções ou de pequenas plantações e áreas de pastagens. Mas em outros era possível ver árvores bem altas que sombreavam o leito do córrego. Era muito bonito ver as folhas flutuando na água, ou mesmo no fundo!

O gran finale do passeio era chegar até a cachoeira! Sim, existia uma grande queda d'água (para nós, crianças na época), com uma enorme rocha bem próxima da cachoeira. Lá fazíamos nosso piquenique antes de fazer o caminho de volta. Infelizmente não sei como está essa cachoeira hoje. Provavelmente a queda d'água ainda exista, mas não me atrevo a descer e caminhar pelas margens até ela. Mesmo porque, não existem mais margens, a água é escura de tanto esgoto, tem um cheiro horrível, muito lixo. Agora, de animais, só vejo grandes ratos...

Foto recente do córrego Urubu, no trecho próximo à ponte.

Meu irmãozinho e eu íamos sozinhos caminhar pelas margens, e perdemos a conta de quantas vezes nossa mãe nos castigou por isso. E ela tinha toda a razão para nos castigar. Lembro a vocês que o Urubu já era um córrego com indícios de poluição lá em 1989, o que elevava os riscos de contrairmos doenças se entrássemos em contato com a água. Além disso, havia corredeiras fortes, se caíssemos, poderíamos ser arrastados e nos afogarmos. E também, havia outros animais menos simpáticos que os pássaros e libélulas que habitavam as margens, como cobras, aranhas e escorpiões. Portanto, NUNCA, JAMAIS, em HIPÓTESE ALGUMA, entre em um córrego poluído. Nós pesquisadores e pesquisadoras até entramos, mas quando isso acontece estamos devidamente protegidos.

Ainda há esperanças?

É pessoal, infelizmente o córrego Urubu não teve um destino legal até aqui. Contando assim, a gente até poderia pensar: "por isso mesmo devemos canalizar e esconder esses rios urbanos embaixo de uma grande avenida". Esta não é a melhor solução, pode apostar. Nós aqui do blog, e muitos outros ecólogos e ecólogas no Brasil e no mundo acreditamos que, os rios urbanos devem ser despoluídos, revitalizados, e, portanto, reincorporados à paisagem. Para isso, algumas ações podem ser realizadas, por exemplo: monitorar a qualidade de águas, ecossistemas e a biodiversidade; proteger a mata ciliar; destinar corretamente nosso lixo e esgoto; nos envolvermos nas tomadas de decisões sobre o planejamento de nossas cidades; e por aí vai. Por isso, acreditamos na sua participação, na sua vontade de pesquisar junto com a gente e de se tornar um cientista cidadão ou uma cientista cidadã em busca de um futuro melhor para nós, nossas cidades e para o meio ambiente.




Nesta seção também iremos trazer Convidados Especiais: os nossos "Contadores de Histórias".

Afinal, quem sabe mais sobre a história de seus rios que os moradores da região?

Você tem uma história para contar sobre um rio perto de você? Eu tenho e, quase todos nós temos. Nossos amigos, nossos vizinhos, nossos tios, nossos pais, nossos avós, quanto mais tempo moramos em uma região, com certeza, mais histórias teremos para contar. E que tal contá-las por aqui, para outros moradores de outras regiões, com outras histórias para contar?

Como está o rio que passa perto da sua casa? Ele foi sempre assim? Vocês utilizam ou já utilizaram suas águas?

Esta seção terá postagens com a colaboração de vocês, então, quanto mais contribuírem mais histórias aparecerão por aqui. Conte a sua! Conte de alguém da sua família! Afinal, assim como vocês estão curiosos com as histórias que iremos contar, estamos muito interessados na história de vocês também. Mande sua história sobre um rio, riacho, córrego, lagoa, através de nossa página de Contatos.

Compartilhe conosco histórias de conhecedores tradicionais. Adoramos ler histórias e apostamos que a sua será muito enriquecedora para o nosso projeto!

© 2020 Juliana França, doutora em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora